Antes
Houve uma época na qual o Grande Reino se encobriu em Névoa. Névoa tão densa que os Cavaleiros do Rei andavam com os cavalos amarrados uns aos outros, para que não se perdessem. Os Comerciantes, com medo de alvo de saqueadores, fecharam as portas e as janelas dos armazéns. Poucos eram os que se arriscavam a sair de suas cabanas, pois o mundo fora delas próprias havia se tornado um mundo de desconhecidos e de frio cortante.
Eu, antes do Grande Nevoeiro se instalar, era um Contemplador Real, titulo dado pelo próprio rei aos que ele julga sábios da arte da contemplação do belo. Era conhecido por todo o reino por saber a posição de cada estrela do céu em cada lua do ano e por saber só de olhar quais as maçãs prontas para a colheita e as que ainda deviam esperar. Lia, na mão dos aldeões o futuro de seus filhos e dos filhos deles sem errar nem uma linha... Mas isso foi antes do Grande Nevoeiro.
Depois dele, pouco sabia de todas essas coisas. Na verdade, ainda poderia apontar no céu e dizer que lá estava uma bela estrela e dizer que as maçãs estavam maduras, mas não podia mais Contemplar nenhuma dessas coisas. Existe uma sutileza entre o Contemplar e o afirmar. Afirmar, sem Contemplar, é simplesmente ter esperança. Sendo assim, passei de Contemplador Real a um simples Semeador de Esperanças.
Vagava pela névoa e pegava na mão dos Aldeões que por mim passavam. Vendo suas mãos sujas de tatear o chão procurando caminho na Névoa, eu ainda podia dizer de seus filhos e dos filhos de seus filhos, e assim fazer com que cressem que a névoa era um estado passageiro. Apesar de não ser a profissão que eu tinha escolhido pra mim, eu era um Semeador de Esperanças feliz.
Durante
Numa dessas minhas caminhadas, encontrei um jovem rapaz. Ele estava sentado na grama molhada e olhava pro alto, pro distante. Aproximei-me dele para tentar ver o que ele observava tão atentamente, mas eu só via Névoa. Ele parecia tão solitário mas ao mesmo tempo tão seguro do que fazia que em instantes me convenci de que esse rapaz não precisava de um Semeador de Esperanças, e segui meu caminho.
Passei pelo mesmo lugar algumas vezes e vi que ele sempre estava lá, olhando pro alto na Névoa... Isso começou a me instigar. De certa forma, esse rapaz me lembrava eu mesmo no meu tempo de Contemplador, e isso me fazia reviver boas lembranças da profissão que já não mais restava em mim.
Certa noite eu perguntei “Olá, sou o Semeador de Esperanças Real. Quem és tu?”. Não houve resposta por alguns instantes, até que ele balançou a cabeça, como quem desvia o foco de algo importante, e respondeu “Sou um Astrônomo. Desculpe, estou trabalhando.”. “Trabalhando?”, me perguntei. Astrônomos precisam ver o céu pra trabalhar, e eu só via Névoa. Mesmo assim deixei o suposto astrônomo, que se dizia tão ocupado, cuidar do seu céu de névoa.
Dias depois ainda estava ele lá. Me aproximei indignado. “Ainda a ver estrelas, Astrônomo real?”. E a resposta veio na forma de um rápido e eficaz “Sim.”. Falei, “Bem, será que não terias um momento para um Semeador de Esperanças? Talvez possa te ajudar em algo.”. O Astrônomo mal esboçou reação, apenas Estendeu a Mão para mim.
Em suas mãos, as linhas cruzadas me disseram que ele era rei de seu próprio reino e que tal reino era terra que só ele poderia plantar. As linhas disseram que eu nada eu poderia fazer pra ajudar, por que não havia Bom Fruto que eu pudesse Semear que lá já existisse com abundancia. Pela primeira vez, peguei na mão de alguém que não precisava de um Semeador de Esperanças.
Largando sua mão, tirei um pote do meu bolso e pequei uma pequena semente dentro. Disse “Tome, bom Astrônomo Real. Não posso Semear nada que já não tenhas consigo. Te dou das minhas próprias sementes, um único grão é tão doce que pode matar a fome se quiseres. Mas os mais doces grão vem se quiseres o cultivar no solo onde só tu podes plantar.”. O jovem Astrônomo sorriu sem tirar os olhos do seu céu e disse “Obrigado.”, colocando a semente que eu havia lhe dado em seu bolso.
Semanas depois, passo na mesma grama em meio ao Grande Nevoeiro, e ouço a voz do Astrônomo dizendo “Sente-se comigo, Semeador de Esperanças. Vamos olhar as estrelas.”. Ainda que incrédulo, sentei ao seu lado. Olhando para o alto, mesmo só vendo Névoa eu ainda sabia a posição de cada estrela do céu. Mesmo que por trás do véu branco. “O que vês no céu, Astrônomo Real? Quais estrelas estais a estudar?” Indaguei curioso. E ele disse “Vês a grande estrela rosada que quase toca o topo do céu hoje? É ela que estou a estudar.”. Eu sabia que tal estrela não estava lá, nem antes nem depois da névoa, mas mesmo assim ele olhava reto na tal direção.
Curioso, perguntei: “O que mais vês no céu, Astrônomo do Rei? Conte para que eu também possa conhecer teu céu.”. Peguei no meu bolso meu velho caderno de Contemplador e me propus a tomar nota. Nos próximos dias, tudo o que fiz foi catalogar o céu do Astrônomo Real. Não demorou muito para que eu soubesse de cor a posição de cada estrela da qual ele falava, mesmo por trás da Névoa. E não demorou para que eu começasse a troca-las pelas minhas antigas estrelas. Quando desenhava um mapa, via que nele eu colocava estrelas que não eram minhas. Como se o céu que eu agora conhecia fosse fruto de uma fusão. Não mais conhecia o céu por trás do Nevoeiro com meus olhos, e sim com um meu e um do Astrônomo Real.
Após
Não foi só o céu do Astrônomo Real que mudou meu céu. Sua presença em meio a Névoa havia se tornado uma das únicas que eu de fato notava. Andava pelas ruas e, se algum Aldeão o pedisse, fazia vagas previsões sobre o por vir e Semeava a Esperança de uma maneira fraca, sem muito valor de fato. Dava apenas a quantidade necessária para a não desistência.
Além disso, notei o quanto a ausência do Astrônomo Real me abalava. Nas tardes mais claras, quando o Grande Nevoeiro se fazia mais branco que cinza, não o encontrava no gramado de sempre. Por vezes, ele só regressaria na noite seguinte, com um sorriso de canto e com a frase de sempre: “Dias claros não são para os Astrônomos, caro Semeador de Esperanças.”. Na verdade, por vezes eu fiquei apenas sentado na grama e olhando para o auto, vendo o branco da Névoa com os olhos, mas o céu do Astrônomo em meus pensamentos... Não me incomodava o fato de que ele não viesse, apenas pensava no quanto seria bom estar em sua companhia.
Fui tomando consciência de que tinha passado de um Contemplador arruinado para um Semeador que não semeava mais, apenas contemplava. E o que eu contemplava era a chave de tudo. Eu era agora o Contemplador Real do Astrônomo Real. Fiz desse passatempo uma tarefa e aos poucos tornei essa tarefa um ofício. Mas não era tão bom ter mudado assim...
Como Semeador, deixei a desejar. Ao longo dos últimos tempos tinha tido uma única semente. Semente essa que nunca havia visto semelhante, nem em meus tempos de Contemplador Real. Porem, não sei mais onde essa semente está... Na verdade, sei pra quem a dei, mas um Semeador também deve dar terra, dar água e dar proteção, e não só entregar a semente. Um Semeador não é um bom Semeador se não obtêm os frutos de sua semente.
Mas porque não vi os frutos? Por que se quer eu os semeei! Não Preparei o Solo, não Dei Água, não Cuidei... Se não houvesse tanta Névoa, talvez o Rei já tivesse me destituído do meu cargo por inabilidade. E seria justo.
Meu maior erro foi Contemplar quando na verdade deveria ter aceitado meu ofício de Semeador. Meu maior pecado foi me deixar Fascinar, e com isso deixar de ser o que era para me tornar o que eu almejava ser... Deixar de viver a minha vida para viver a vida que eu queria viver...